Cercados por Caixas Pretas

Ao destacarmos a crescente inserção dos mais variados aparatos tecnológicos juntamente às atividades e peculiaridades da vida humana, ressaltando a dependência que, hoje mais do que nunca, apresentamos em relação a evolução da tecnologia, não estamos lançando luz a um contexto novo e surpreendente, mas sim, demonstrando um processo em curso que, pouco a pouco, reconfigura os mais variados elementos que compõem a sociedade. Considerando o período atual, é possível afirmar que, a partir do momento em que “[...] instrumentos viraram máquinas, sua relação com o homem se inverteu. Antes da revolução industrial, os instrumentos cercavam os homens; depois, as máquinas eram por eles cercadas. Antes, o homem era a constante da relação, e o instrumento era a variável; depois, a máquina passou a ser relativamente constante. Antes os instrumentos funcionavam em função do homem; depois grande parte da humanidade passou a funcionar em função das máquinas. ” (FLUSSER, 2011, p. 34).

A crescente dependência humana com relação as máquinas, aparelhos produzidos com base em conceitos e princípios científico e tecnológicos, é notável. Contudo, talvez a face mais sombria da realidade em que nos encontramos esteja interligada ao fato de que não somos verdadeiramente capazes de compreender os fundamentos, intenções, conceitos por trás do funcionamento de uma máquina, como o computador que me proponho a utilizar para redigir este texto. Uma vez que não entendemos o processo completo de funcionamento, as teorias científicas que possibilitaram a criação dos aparelhos e instrumentos que nos cercam, percebemo-nos circundados por caixas pretas, objetos que utilizamos, mas não somos capazes de compreender em sua totalidade.

Neste contexto, torna-se crucial a busca pela compreensão da realidade que nos cerca, das intenções e conceitos existente por trás dos instrumentos tecnológicos que utilizamos, bem como, o estabelecimento de uma percepção de que os aparelhos “[...] são de fato gigantescos, pois foram produzidos para sê-lo. E de forma nenhuma são super-humanos. Pelo contrário, são pálidas simulações do pensamento humano. O dever de toda a crítica dos aparelhos é mostrar a cretinice infra-humana dos aparelhos. Mostrar que se trata de vassouras invocadas por aprendiz de feiticeiro que traz, automaticamente, água até afogar a humanidade, e que se multiplicam automaticamente. Seu intuito deve ser exorcizar essas vassouras, recolocando-as naquele canto ao qual pertencem, conforme a intenção inicial humana. ” (FLUSSER, 2011, p. 91).

Publicado pela primeira vez no ano de 1983, a Filosofia da Caixa Preta de Vilém Flusser é surpreendentemente atual, tratando-se de uma reflexão pertinente em meio ao contexto em que nos encontramos enquanto indivíduos e sociedade. Partindo do universo da fotografia, o autor estabelece uma crítica com relação a modernidade e sua dependência perante o avanço da ciência e tecnologia, bem como, a produção e inserção de aparatos tecnológicos em meio aos mais diversos aspectos da vida humana. Com reflexões relevantes, desenvolvidas ao longo de uma pequena quantidade de páginas, esta obra é leitura obrigatória para pesquisadores e interessados na temática de Ciência, Tecnologia e Sociedade.

Referência:
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume, 2011. 104 p

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